Visão Psiquiátrica sobre Assassinos em Série
Compreensão Psiquiátrica do Fenômeno
A psiquiatria forense tem se dedicado ao estudo dos assassinos em série, buscando compreender os fatores biológicos, psicológicos e sociais que contribuem para o desenvolvimento desse comportamento extremo. Diferentemente da visão popular que muitas vezes romantiza ou simplifica esses casos, a abordagem psiquiátrica é multidimensional e baseada em evidências científicas.
É importante ressaltar que não existe um diagnóstico específico de "assassino em série" nos manuais de classificação de transtornos mentais como o DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) ou a CID-10 (Classificação Internacional de Doenças). No entanto, diversos transtornos mentais podem estar associados a esse comportamento, embora nenhum deles, isoladamente, explique ou determine a ocorrência de homicídios múltiplos.
Transtornos de Personalidade
Os transtornos de personalidade, especialmente o Transtorno de Personalidade Antissocial (TPAS) e traços de psicopatia, são frequentemente identificados em assassinos em série. Estes transtornos caracterizam-se por:
- Desrespeito persistente pelos direitos dos outros
- Ausência de remorso ou culpa
- Impulsividade e incapacidade de planejar o futuro
- Irritabilidade e agressividade recorrentes
- Desprezo irresponsável pela segurança própria ou alheia
- Mentira patológica e manipulação
É importante destacar que, embora muitos assassinos em série apresentem características de psicopatia, a grande maioria das pessoas com transtorno de personalidade antissocial ou traços psicopáticos não se torna assassina em série. Outros fatores, como histórico de trauma, influências ambientais e possíveis alterações neurobiológicas, interagem de maneira complexa para produzir esse comportamento extremo.
"Apesar de alguns experimentarem certa perplexidade em relação aos próprios atos, em geral a capacidade de entender o caráter criminoso de sua conduta é plena, e não há desejo de controlar o impulso, o que os torna totalmente responsáveis perante a lei brasileira." - Psiquiatria Forense
Aspectos Neurobiológicos
Estudos de neuroimagem e neurociência têm identificado alterações cerebrais em indivíduos com comportamento violento persistente, incluindo assassinos em série. Algumas das descobertas mais relevantes incluem:
- Alterações no córtex pré-frontal: Região responsável pelo controle de impulsos, planejamento e tomada de decisões morais
- Disfunções na amígdala: Estrutura cerebral envolvida no processamento emocional e reconhecimento do medo
- Anormalidades no sistema límbico: Conjunto de estruturas cerebrais relacionadas às emoções e comportamentos instintivos
- Alterações nos níveis de neurotransmissores: Particularmente serotonina, dopamina e noradrenalina
Essas alterações neurobiológicas podem contribuir para características como reduzida empatia, dificuldade em processar emoções, especialmente o medo, e comprometimento do controle de impulsos. No entanto, é fundamental entender que essas alterações não são determinísticas e interagem com fatores ambientais e experiências de vida.
Fatores de Risco e Desenvolvimento
A pesquisa psiquiátrica tem identificado diversos fatores de risco que, quando combinados, podem aumentar a probabilidade de desenvolvimento de comportamento violento extremo. Entre esses fatores estão:
- Histórico de abuso na infância: Físico, sexual ou emocional
- Negligência parental severa
- Exposição precoce à violência
- Traumatismo cranioencefálico
- Disfunção familiar grave
- Comportamentos precursores: Crueldade com animais, piromania, enurese persistente (a chamada "tríade de MacDonald")
A chamada "tríade homicida" (crueldade com animais, piromania e enurese) foi por muito tempo considerada preditiva de comportamento violento futuro. No entanto, pesquisas mais recentes têm questionado a validade dessa tríade como fator preditivo específico para assassinos em série, embora a crueldade com animais continue sendo um sinal de alerta importante.
Tipologias e Motivações
Do ponto de vista psiquiátrico, os assassinos em série podem ser classificados de acordo com suas motivações predominantes, embora frequentemente haja sobreposição entre categorias:
- Visionários: Agem em resposta a alucinações ou delírios, geralmente associados a transtornos psicóticos
- Hedonistas: Matam pelo prazer, excitação sexual ou ganho material
- Orientados por poder/controle: Buscam domínio total sobre suas vítimas
- Missionários: Acreditam estar "limpando" a sociedade de grupos específicos que consideram indesejáveis
É importante notar que, embora alguns assassinos em série possam apresentar sintomas psicóticos, a maioria não age sob influência de delírios ou alucinações. Seus crimes são geralmente planejados e executados com consciência da ilicitude do ato, o que tem implicações importantes para a determinação da imputabilidade no contexto legal.
Avaliação Psiquiátrica Forense
A avaliação psiquiátrica forense de assassinos em série é um processo complexo que envolve múltiplos aspectos:
- Avaliação diagnóstica: Identificação de transtornos mentais conforme critérios estabelecidos
- Análise da capacidade de entendimento: Determinação da compreensão do caráter ilícito dos atos
- Avaliação da capacidade volitiva: Análise da capacidade de autodeterminação
- Avaliação de risco: Estimativa da probabilidade de reincidência
- Recomendações de tratamento: Quando aplicável
O laudo pericial em casos de assassinos em série segue uma estrutura rigorosa, conforme estabelecido pelas diretrizes de psiquiatria forense:
"ESTRUTURA DO LAUDO PERICIAL: Preâmbulo, Individualização da perícia, Circunstâncias do exame pericial, Identificação do examinando, Síntese processual, Quesitos, História pessoal, História psiquiátrica prévia, História médica, História familiar, Exame do estado mental, Exame físico, Exames e avaliações complementares, Discussão diagnóstica, Diagnóstico positivo, Comentários médico-legais, Conclusão, Resposta aos quesitos." - Psiquiatria Forense
Tratamento e Prognóstico
O tratamento de assassinos em série representa um dos maiores desafios da psiquiatria forense. Alguns pontos importantes incluem:
- Dificuldade de tratamento: Transtornos de personalidade, especialmente com traços psicopáticos, são notoriamente difíceis de tratar
- Abordagens farmacológicas: Medicamentos podem ajudar a controlar sintomas específicos como impulsividade ou agressividade, mas não "curam" o transtorno subjacente
- Terapias comportamentais: Podem ter alguma eficácia em reduzir comportamentos problemáticos, mas com resultados limitados
- Prognóstico reservado: A maioria dos especialistas considera o prognóstico de reabilitação completa como reservado
No contexto forense, o tratamento geralmente ocorre em instituições de custódia, como hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico (antigos manicômios judiciários), onde a segurança é tão importante quanto a abordagem terapêutica.
Referências
- American Psychiatric Association. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 2014.
- Organização Mundial da Saúde. Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10. Porto Alegre: Artmed; 1993.
- Taborda JG, Abdalla-Filho E, Chalub M, Telles LEB. Psiquiatria Forense. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed; 2015.
- Martins de Barros D. Psiquiatria Forense: interfaces jurídicas, éticas e clínicas. São Paulo: FMUSP; 2019.